Ontem, o meu pai foi-se embora. Não foi e já volta; emigrou para o Recife
e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos. A sua
reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena
reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante
os últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os
concertos que foi dando pelo país. Nesses concertos teve salas cheias,
meio-cheias e, por vezes, quase vazias; fê-lo sempre (era o seu trabalho)
com um sorriso nos lábios e boa disposição, ganhando à bilheteira. Ontem,
quando me deitei, senti-me triste. E, ao mesmo tempo, senti-me feliz.
Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e não os pais (mas
talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de conseguir baralhar
essa tendência). Feliz, porque admiro-lhe a coragem de começar outra vez
num país que quase desconhece (e onde quase o desconhecem), partindo
animado pelas coisas novas que irá encontrar. Tudo isto são coisas pessoais
que não interessam a ninguém, excepto à família do senhor Tordo.
Acontece que o meu pai, quer se goste ou não da música que fez, foi uma
figura conhecida desde muito novo e, portanto, a sua partida, que ele se
limitou a anunciar no Facebook, onde mantinha contacto regular com os
amigos e admiradores, acabou por se tornar mediática. E é essa a razão
pela qual escrevo: porque, quase sem o querer, li alguns dos comentários
à sua partida. Muita gente se despediu com palavras de encorajamento.
Outros, contudo, mandaram-no para Cuba. Ou para a Coreia do Norte.
Ou disseram que já devia ter emigrado há muito. Que só faz falta quem
cá está. Chamam-lhe palavrões dos duros. Associam-no à política, de que
se dissociou activamente há décadas (enquanto lá esteve contribuiu, à
sua modesta maneira, com outros músicos, escritores, cineastas e artistas,
para a libertação de um povo). E perguntaram o que iria fazer: limpar WC's
e cozinhas? Usufruir da reforma dourada? Agarrar um "tacho"
proporcionado pelos "amiguinhos"? Houve até um que, com ironia insuspeita,
lhe pediu que "deixasse cá a reforma". Os duzentos e tal euros. Eu entendo o
desamor. Sempre o entendi; é natural, ainda mais natural quando vivemos
como vivemos e onde vivemos e com as dificuldades por que passamos. O
que eu não entendo é o ódio. O meu pai, que é uma pessoa cheia de defeitos
como todos nós - e como todos os autores destes singelos insultos -, fez aquilo
que lhe restava fazer. Quer se queira, quer não, ele faz parte da história da
música em Portugal. Sozinho, ou com Ary dos Santos, ou para algumas das
vozes mais apreciadas do público de hoje - Carminho, Carlos do Carmo,
Marisa, são incontáveis - fez alguns dos temas que irão perdurar enquanto
nos for permitido ouvir música. Pouco importa quem é o homem; isso fica
reservado para a intimidade de quem o conhece. Eu conheço-o: é um tipo
simpático e cheio de humor, que está bem com a vida e que, ontem, partiu
com uma mala às costas e uma guitarra na mão, aos 65 anos, cansado deste
país onde, mais cedo do que tarde, aqueles que o mandam para Cuba, a
Coreia do Norte ou limpar WC's e cozinhas encontrarão, finalmente, a terra
prometida: um lugar onde nada restará senão os reality shows da televisão,
as telenovelas e a vergonha. Os nossos governantes têm-se preparado para
anunciar, contentíssimos, que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o
que acabou com ela. A primeira coisa foi a cultura, que é o património de um
país. A segunda foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na
rua todos os dias. A terceira foi a esperança. E a quarta foi o meu pai, e outros
como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar
cabo deste país - do país que ele, e milhões de pessoas como ele, cheias de
defeitos, quiseram construir: um país melhor para os filhos e para os netos.
Fracassaram nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que podíamos
mudar. Não queremos mudar. Queremos esta miséria, admitimo-la, deixamos
passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do conforto dos seus sofás,
quem, por não ter trabalho aqui - e precisar de trabalhar para, aos 65 anos,
não se transformar num fantasma ou num pedinte - pegou nas malas e numa
guitarra e se foi embora. Ontem, ao deitar-me, imaginei-o dentro do avião,
sozinho, a sonhar com o futuro; bem-disposto, com um sorriso nos lábios. Eu
vou ter muitas saudades dele, mas sou suspeito. Dói-me saber que, ontem, o
meu pai se foi embora.
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