quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Noticias ao Minuto | A Carta Emocionada Que Tordo Filho Escreveu a (e Sobre) Tordo Pai


Carta ao pai

por João Tordo, em 19.02.14
Ontem, o meu pai foi-se embora. Não foi e já volta; emigrou para o Recife
e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos. A sua 
reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena 
reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante 
os últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os
concertos que foi dando pelo país. Nesses concertos teve salas cheias, 
meio-cheias e, por vezes, quase vazias; fê-lo sempre (era o seu trabalho) 
com um sorriso nos lábios e boa disposição, ganhando à bilheteira. Ontem, 
quando me deitei, senti-me triste. E, ao mesmo tempo, senti-me feliz. 
Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e não os pais (mas 
talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de conseguir baralhar 
essa tendência). Feliz, porque admiro-lhe a coragem de começar outra vez 
num país que quase desconhece (e onde quase o desconhecem), partindo 
animado pelas coisas novas que irá encontrar. Tudo isto são coisas pessoais 
que não interessam a ninguém, excepto à família do senhor Tordo. 
Acontece que o meu pai, quer se goste ou não da música que fez, foi uma 
figura conhecida desde muito novo e, portanto, a sua partida, que ele se 
limitou a anunciar no Facebook, onde mantinha contacto regular com os 
amigos e admiradores, acabou por se tornar mediática. E é essa a razão 
pela qual escrevo: porque, quase sem o querer, li alguns dos comentários 
à sua partida. Muita gente se despediu com palavras de encorajamento. 
Outros, contudo, mandaram-no para Cuba. Ou para a Coreia do Norte. 
Ou disseram que já devia ter emigrado há muito. Que só faz falta quem 
cá está. Chamam-lhe palavrões dos duros. Associam-no à política, de que 
se dissociou activamente há décadas (enquanto lá esteve contribuiu, à 
sua modesta maneira, com outros músicos, escritores, cineastas e artistas, 
para a libertação de um povo). E perguntaram o que iria fazer: limpar WC's 
e cozinhas? Usufruir da reforma dourada? Agarrar um "tacho" 
proporcionado pelos "amiguinhos"? Houve até um que, com ironia insuspeita, 
lhe pediu que "deixasse cá a reforma". Os duzentos e tal euros. Eu entendo o 
desamor. Sempre o entendi; é natural, ainda mais natural quando vivemos 
como vivemos e onde vivemos e com as dificuldades por que passamos. O 
que eu não entendo é o ódio. O meu pai, que é uma pessoa cheia de defeitos 
como todos nós - e como todos os autores destes singelos insultos -, fez aquilo 
que lhe restava fazer. Quer se queira, quer não, ele faz parte da história da 
música em Portugal. Sozinho, ou com Ary dos Santos, ou para algumas das 
vozes mais apreciadas do público de hoje - Carminho, Carlos do Carmo, 
Marisa, são incontáveis - fez alguns dos temas que irão perdurar enquanto 
nos for permitido ouvir música. Pouco importa quem é o homem; isso fica 
reservado para a intimidade de quem o conhece. Eu conheço-o: é um tipo 
simpático e cheio de humor, que está bem com a vida e que, ontem, partiu 
com uma mala às costas e uma guitarra na mão, aos 65 anos, cansado deste 
país onde, mais cedo do que tarde, aqueles que o mandam para Cuba, a 
Coreia do Norte ou limpar WC's e cozinhas encontrarão, finalmente, a terra 
prometida: um lugar onde nada restará senão os reality shows da televisão, 
as telenovelas e a vergonha. Os nossos governantes têm-se preparado para 
anunciar, contentíssimos, que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o 
que acabou com ela. A primeira coisa foi a cultura, que é o património de um 
país. A segunda foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na 
rua todos os dias. A terceira foi a esperança. E a quarta foi o meu pai, e outros 
como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar 
cabo deste país - do país que ele, e milhões de pessoas como ele, cheias de 
defeitos, quiseram construir: um país melhor para os filhos e para os netos. 
Fracassaram nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que podíamos 
mudar. Não queremos mudar. Queremos esta miséria, admitimo-la, deixamos 
passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do conforto dos seus sofás, 
quem, por não ter trabalho aqui - e precisar de trabalhar para, aos 65 anos, 
não se transformar num fantasma ou num pedinte - pegou nas malas e numa 
guitarra e se foi embora. Ontem, ao deitar-me, imaginei-o dentro do avião, 
sozinho, a sonhar com o futuro; bem-disposto, com um sorriso nos lábios. Eu 
vou ter muitas saudades dele, mas sou suspeito. Dói-me saber que, ontem, o 
meu pai se foi embora.
















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Quando lutámos por um país democrático e com valores, e vermos os nossos pais - ou, como pessoas no meu caso -, os nossos filhos partirem, a desânimo, a dor, a desesperança, a falta de chão... são algumas das angústias e sentimentos que nos atormentam.
E ver os nossos artistas, aqueles que admiramos, amamos e de quem nos orgulhamos, também causa muita amargura.

Esta carta, de João Tordo ao seu pai, é sobre desabafos de um filho e sobre alguém que eu amo muito: Fernando Tordo.

Sobre a matéria do Notícias ao Minuto, só me apetece dizer que a vida privada das pessoas que me fizeram feliz e ainda fazem, através da sua arte, não me diz respeito. Nunca disse! E não compreendo como os portugueses vivem a vida dos outros, desta forma mesquinha e má.

Lamento que o Fernando Tordo tenha tido que abandonar o seu país, que é o meu que já abandonei um dia para por causa da ditadura, e do meu filho que abandonou, também, para sobreviver. Aqui não há condições. Só as há para os corruptos, vendidos, mal formados, ricos...

Com esta decisão de Fernando Tordo, e a reacção dos portugueses que se acham no direito de criticar tudo e todos e mal-dizer das opções de vida de cada um, eu confirmei o que sabia já: que os portugueses continuam pessoas pequeninas, mesquinhas, invejosas, más... e isso tudo advêm de sermos um povo inculto, começando pelo Presidente da República e acabando no Primeiro-Ministro. E se os portugueses começassem por fazer as suas críticas, lutas e escolhas nas urnas, democraticamente, indo votar e não elegendo sempre os mesmos que têm estado a acabar com o nosso Portugal!...


Cultura é o que faz falta!
Como o pão para a boca, a cultura é o pão da alma

JOÃO



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