A estes tempos de proclamadas inevitabilidades, a sabedoria de Mia Couto contrapõe o princípio da política: "contra factos, só há argumentos". E este é um tempo em que os arautos do "there is no alternative", de Margaret Thatcher, alérgico à argumentação plural e à disputa de políticas, guiam a governação europeia e a governação nacional. A crise é a sua política, é ela que lhes serve de ensejo para dizer que os bens comuns são atavismos - e privatizá-los ao preço da uva mijona - e que os direitos sociais são obstáculos ao progresso - e trocá-los por uma combinação perversa entre exploração (sim, exploração!) e apologia da distribuição das sobras dos restaurantes ou das farmácias. E não, claro, não é nunca por opção política - é assim porque tem de ser assim. Este nojo da política, olhada e dita como mera feira de vaidades e de abotoamentos pessoais, é o caldo de cultura em que germina o elogio da governação como mera tecnicidade onde não se joga outra coisa que não seja a optimização de uma gestão supostamente neutra dos recursos orçamentais.
Veja-se o afã da máquina de comunicação do actual Governo português em dar centralidade mediática aos "independentes" que alinham no elenco de Passos Coelho e, em especial, ao ministro das Finanças. Por ali paira a fezada de que a "independência" do responsável pelas finanças públicas é garantia sine qua non de resistência contra o desbaratar de recursos que "os políticos" inevitavelmente impõem a seu favor. Aqui está, em todo o seu esplendor, a ideologia disfarçada de neutralidade. Vítor Gaspar não tem um programa? Quando decide que o imposto extraordinário incidirá sobre os rendimentos do trabalho, ficando os dividendos isentos, não fez a mais política e ideológica das escolhas? E o mesmo vale para a governação da Europa. O Banco Central Europeu é independente de quê? Quando Trichet bane do horizonte qualquer reestruturação da dívida grega em nome de uma ortodoxia que arrasta a União Europeia para a desconstrução e perpetua uma receita de austeridade sem outro horizonte que não seja o empobrecimento dos países periféricos do euro, que dizer da sua isenção política?
É em nome dessa exterioridade à política que os programas de austeridade e privatizações vêm sendo apresentados como cura técnica para a crise e não como escolha política para embaratecer o trabalho. A lógica é, de há muito, fundada numa fezada: "para podermos recuperar, temos de nos afundar primeiro". É a versão apocalypse now da promessa de acalmia dos mercados que iria ser trazida por cada PEC. É a fezada num fogo redentor que queimará os preguiçosos, os ineficientes, os corruptos, e nos deixará, no fim, uma sociedade pura, feita de gente empreendedora, poupada e responsável. Mas nem contada às criancinhas esta história cândida convence. No fim do fogo purificador restarão apenas cinzas. Porque é de cinzas frias que se trata quando o que se quer realmente obter é uma perda irreversível de pressão dignificadora dos salários, uma privatização em massa dos bens comuns e um abate estratégico de direitos universais. Não restarão mais que cinzas frias depois do empobrecimento e do desperdício de recursos que a recessão assim alimentada provocará. E não restarão mais que cinzas frias depois da desconstrução europeia que este plano necessariamente comporta, como se tem visto.
"Até que ponto devemos continuar a experimentar as ideias que falharam?" - pergunta o insuspeito Stiglitz. E assim denuncia que esta política feita de aversão à política é a mais política das políticas. Deixemos então tudo claro: não há senão argumentos em disputa e escolhas a fazer. Contra os factos que nos desumanizam. Ou a favor deles.
Sem comentários:
Enviar um comentário